No final da adaptação cinematográfica original de “Mary Poppins” (1964), a babá com poderes mágicos e inexplicáveis promete não demorar a retornar. Balela. Mary Poppins só voltou às telas 54 anos depois, e até mesmo no tempo diegético do filme demorou quase 25 anos para voltar à antiga casa dos Banks.
Em “O Retorno de Mary Poppins” (Dir.: Rob Marshall, 2018), a personagem título (Emily Blunt) desce dos céus novamente com seu fiel amigo Jack (Lin-Manuel Miranda) para ajudar Michael (Ben Whishaw) e Jane Banks (Emily Mortimer), agora adultos trabalhadores, que sofreram uma perda pessoal. As crianças Annabel (Pixie Davies), Georgie (Joel Dawson) e John (Nathanael Saleh) vivem com o pai na mesma casa de 24 anos atrás e precisam da babá enigmática e o acendedor de lampiões otimista para trazer alegria e magia de volta para suas vidas.
É evidente que o diretor Rob Marshall e o roteirista David Magee não quiseram apenas fazer uma continuação do filme anterior, mas sim um complemento do mesmo, lançando luz sob os tradicionais felizes para sempre dos filmes da Disney. E tudo isso é construído em cima de bastante nostalgia, como a menção e até a presença de personagens antigos, e a reutilização de acordes das músicas e dos cenários do longa de 64 na criação de um ambiente e musicalidades diferentes e mais modernas, como a inserção do Rap em número musical.
O novo roteiro traz dramas mais pesados, como a temática da morte, ao mesmo tempo em que soa mais vazio de sentimentos e emoções causadas no espectador e principalmente nos personagens. Falta emoção a todos os personagens coadjuvantes e figurantes nas cenas onde Mary Poppins volta à residência dos Banks como no momento da despedida. É inaceitável, narrativamente falando, que, agora crescidos, Michael e Jane Banks sejam praticamente indiferentes ao retorno da sua inesquecível babá, haja vista eles terem sofrido muito com sua partida 24 anos atrás, ou até mesmo a pouca emoção transmitida em tela em seu novo adeus.
Outro estranho fator presente no longa, ou nesse caso ausente, é o apagamento da existência da Sra. Banks. Seja qual for a sua interpretação sintomática (machista ou feminista) acerca da obra de 64, é inegável a importância da matriarca da família para a narrativa. Pois bem, em “O Retorno…” a maioria dos personagens é relembrado através de falas ou representações, menos a Sra. Banks. Mas porque? Analisando duramente aspectos das duas obras, é notório o acovardamento da Disney na questão feminista, por exemplo. Se antes tínhamos uma Sra. Banks engajada no movimento Sufragista e fazendo campanha pelo direito ao voto das mulheres, mesmo que escondida do marido, agora não temos nem menção a sua existência, Jane que deveria ser o derivado dessa mãe, somente pincela discretamente sobre o movimento sindical que tomava força em Londres após a quebra da bolsa de valores de 1929. Isso só prova que o longa não conseguiu se reinventar de maneira eficiente, e ainda carrega anacronismos que incomodam, como o desconforto da própria Mary Poppins quando indagada sobre sua idade e seu peso, respondendo com rispidez que não se deve perguntar a idade de uma mulher. Novamente: mas porque? A mulher precisa mesmo se manter presa a esses padrões de gêneros que talvez fossem considerados normais em 1930? Ok que Mary Poppins é mágica e se tornará jovem para sempre, porém “O Retorno…” é um filme feito para um público de mortais e trouxas (no sentido de sem magia, mas dependendo do seu caso pode ser no sentido literal mesmo) em 2018, e sinceramente não dá para engolir mais esses estereótipos de gênero quando não abordados criticamente dentro da obra.
Mary Poppins toda animadinha porque não ia precisar andar para salvar a família Banks novamente.
É bem verdade que Emily Blunt tinha a difícil missão de reinterpretar a personagem que foi imortalizada, pela ganhadora do Oscar por esse mesmo papel, Julie Andrews. Entretanto, a atriz transforma a personagem em uma quase super-heroína, através de uma interpretação enérgica e competente, transbordando para a tela todo o seu talento e carisma quase que surreais, mesclando magistralmente o temperamento doce e levemente duro da personagem principal. Que mulher!
A trilha sonora serve ao filme como um bom musical deve ser servido, com músicas que encaixam e dialogam perfeitamente com a trama, e números musicais inseridos organicamente em transições de cenas e/ou espaços, utilizando bem os personagens, cenários, o figurino e as inserções em animação 2D, propositalmente extravagantes.
“O Retorno de Mary Poppins” é, até certo ponto, uma atualização e revitalização da história inicial, porém não do discurso. O sentimento que fica é de que o longa de 1964 é essencialmente referenciado aqui, como também é mais corajoso. Todavia, é a volta da magia dos Estúdios Disney que outrora articulou de maneira mais bem-sucedida, dentro do enredo, as relações de nossos heróis proletários, como a babá, o acendendor de lampião, a sufragista… mas que ainda encanta com números musicais efervescentes e performances deliciosas.
P.S.: Quer expandir mais o seu conhecimento sobre o processo de filmagem e as tretas no set do clássico Mary Poppins de 1964? Então recomendamos fortemente o longa “Walt Nos Bastidores de Mary Poppins”(2013). Um petardo!